Fernanda Tartuce*
Sumário: 1. Contextualização do tema. 2. Evolução do
instituto. 3. Dos critérios previstos em leis especiais e do afastamento da
indenização “tarifada”. 4. Das diretrizes a serem observadas pelo julgador. 5.
Do critério da composição do dano. 6. Do caráter de desestímulo. 7. Responsabilidade civil como sanção. 8.
Conclusão. 8. Referências bibliográficas.
1. Contextualização do tema.
A
tutela dos direitos de personalidade, a partir de sua contemplação expressa na
Constituição Federal de 1988, passou a ser objeto de grandes debates entre os
operadores do direito.
O
Código Civil de 2002, adaptado ao comando constitucional de priorização à
dignidade humana, faz expressa menção à perpetração de ato ilícito quando se
cause dano, “ainda que exclusivamente moral”.
Atualmente,
grande parte das pretensões indenizatórias em nossas Cortes requer
montantes significativos a título de tal reparação.
Não
obstante tal realidade, atualmente não há qualquer diretriz segura sobre o
destino de uma pretensão ao ressarcimento por danos morais em termos de
valoração pecuniária, não havendo lei específica sobre o tema[1]. Em
nosso sistema, deixou-se ao prudente arbítrio do juiz a (árdua) tarefa de
determinar o valor apto a reparar a lesão sofrida no patrimônio ideal do
indivíduo.
* artigo elaborado e publicado em 2006 na revista arte juridica (Universidade
de Londrina), v. 3, p. 329-342, 2006)
[1] Em
termos legislativos, há duas tentativas concretas, consubstanciadas em projetos
de lei, com critérios específicos para a fixação da indenização referida. A
primeira pertine ao polêmico projeto de lei 150/1999, que traria valores fixos
para indenizações, com balizas de valores entre R$ 20 mil e R$ 180 mil,
conforme a intensidade da gravidade do dano, além de certos critérios para
análise do juiz, como a situação social, política e econômica das pessoas
envolvidas e o grau de culpa, dentre outros. Segundo informação constante no
site do Senado Federal, tal projeto já foi aprovado por aquela Casa e consta
como tendo sido encaminhado à Câmara dos Deputados em 2002. Encontra-se ainda
em trâmite o Projeto de Lei 6.960/2002, com alterações pontuais em diversos
dispositivos do novo Código Civil. Em relação ao artigo 944, que fala da
extensão do dano como critério para a indenização, pretende-se acrescentar
dispositivo no seguinte sentido: “a reparação do dano moral deve constituir-se
em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante”.
Diante
de tal realidade, cabe o questionamento: de que critério se deve valer o
magistrado para fixar o valor da indenização? Deve ele se pautar precipuamente
pelo dano, visando a compor a vítima, ou deve considerar a condição do agente e
sua culpa, visando a desestimulá-lo de condutas danosas e fixar indenização
consentânea com suas possibilidades? É sobre tais parâmetros que este trabalho
se voltará, especialmente tendo em vista o panorama do atual Código Civil, que
trouxe dispositivo inédito sobre a consideração do grau de culpa e da fixação
do valor da indenização.
2. Da evolução do instituto
“Quem
furta um asno deve pagar uma indenização; quem rouba a honra, o sossego, a
liberdade, nada deve sofrer?[1]”.
Felizmente,
desde há muito a resposta a tal inquietação vem sendo negativa. Mesmo antes da
Constituição de 1988, em que direitos de personalidade como honra, a intimidade
e a integridade passaram a ser expressamente referidos, já havia decisões
atribuindo indenizações pela lesão a direitos de personalidade[2].
A
questão sobre a quantificação da indenização, porém, ainda não encontra
resposta segura.
Num
primeiro momento, poder-se-ia pensar que cada um conhece o valor de seus
sentimentos e atributos, podendo indicar o valor apto a atenuar o sofrimento.
Assim, em cada demanda, o autor aduziria sua pretensão trazendo elementos ao
julgador para que este aferisse a melhor solução.
Todavia,
é praxe que, na petição inicial, o autor use uma formula genérica, formulando
pedido no qual remete a fixação da indenização ao prudente arbítrio do juiz.
Assim, volta o magistrado ao dilema inicial: como fixar um valor?
Exsurge
de forma cristalina a complexidade da apuração do valor devido, seja em virtude
da natureza intangível do bem da vida, seja pela falta de parâmetros
legislativos genéricos[3] para
aquilatar a verba apta à reparação em tela. Eis porque a jurisprudência tem se
socorrido de critérios vários para se chegar a uma solução adequada à questio iuris apresentada.
[1] Citado
por Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo
Penal vol. 2. SP, Ed. Saraiva, 1997, p. 17.
[2] Em
sua obra clássica “O dano moral e sua reparação” (cuja 1a edição
data de 1955), o professor Wilson Melo da Silva relata a existência de posições
favoráveis à reparabilidade dos danos morais em doutrina em jurisprudência
desde os idos de 1910. Dentre estas, destacamos o seguinte julgado do STF,
datado de 13/12/1913: “Estão acordes todos os autores em reconhecer e confessar
a dificuldade, a impossibilidade, se quiserem, de dar uma expressão econômica a
valores morais como esse que perdeu a autora. Mas ao mesmo tempo, na doutrina
dos melhores escritores e da jurisprudência dos tribunais, mais adiantados,
afirma-se que é preciso reconhecer o direito sobre esses bens morais e a
necessidade de obrigar os que violam tais direitos a um ressarcimento que é
antes destinado ao fim de reconhecer e consagrar o direito de uma justa
indenização” (in RT 8/181) (Silva, Wilson Melo da. O dano moral e sua
reparação. Forense, Rio de Janeiro, 1999, p. 536).
[3]
Afirma-se a falta de critérios genéricos para reparações morais das mais
variadas espécies, sendo certo que algumas leis referem-se a situações especificas,
como as relativas a danos perpetrados pela mídia.
Uma
investigação atenta sobre os parâmetros utilizados pelo julgador nos mostra
que, muitas vezes, as circunstâncias fáticas é que dão o arcabouço condutor do
pensamento do magistrado.
Para os
juízes que busquem decidir com base em ensinamentos doutrinários e orientações
jurisprudenciais, alguns posicionamentos podem ser de grande valor para que se
alcance o valor devido. Na falta de uma opção legislativa expressa sobre os
parâmetros utilizados para que se atinja o quantum
debeatur, são sugeridos critérios como a composição e o desestímulo (quanto
a este último, algumas vezes, fala-se em caráter punitivo).
A índole compositiva visa ao
dimensionamento da indenização com vistas a trazer à vítima uma compensação
pelo sofrimento experimentado, buscando atribuir-lhe um valor condizente com a
lesão imposta.
Já a vertente do caráter de
desestímulo fixa o montante pecuniário a partir da análise preponderante da
condição do causador do dano, para que a responsabilidade civil atinja seu
escopo de inibir condutas violadoras de direitos alheios.
3. Dos critérios previstos em leis especiais e do afastamento da
indenização “tarifada”
É certo que carece nossa
legislação de critérios genéricos para a fixação de indenizações por dano
moral.
Assim, no início de seu
contato com a matéria, nossos magistrados acabaram se socorrendo dos critérios
e valores presentes em legislações específicas, como as referentes à imprensa[1]
e ao Código Brasileiro de Aeronáutica[2],
mesmo que as lides reveladas em juízo não tivessem qualquer similitude com as
situações descritas nas respectivas leis.
Eis porque, por certo tempo,
os magistrados fixaram as indenizações com base em número determinado de
salários mínimos: porque a Lei de Imprensa e o Código Brasileiro de Telecomunicações
utilizaram tal referencial para a fixação dos valores.
A esse respeito, cumpre
salientar que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça[3]
entendeu não se revelar possível a fixação de indenização em salários mínimos,
diante de recente precedente do Egrégio Supremo Tribunal Federal nesse sentido[4].
[1] Nossa
Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), em seu artigo 53, inciso II, aduz expressamente
que deve o juiz levar em conta, ao arbitrar a indenização por dano moral,
dentre outros fatores, a intensidade do dolo ou o grau de culpa do responsável.
[2] Segundo a Lei 7565/86, em seu artigo 246, “a responsabilidade do transportador (arts. 123, 124 e
222, parágrafo único), por danos ocorridos durante a execução do contrato de
transporte (arts. 233, 234, § 1º, 245), está sujeita aos limites estabelecidos
neste Título (art. 257, 260, 262, 269 e 277)”. Tais valores são fixos e levam
em conta certo número de OTNs (Obrigações do Tesouro Nacional).
[3]
Por todos, confira-se julgado nesse sentido, cuja ementa segue: “Ação de
indenização. Embargos de declaração. Redução do valor da indenização por dano
moral. Fixação da indenização em salário mínimo: Lei nº 6.205/75. Súmula nº 07
da Corte. (...) 7. A fixação da indenização por meio de salários mínimos,
diante de recente precedente do Supremo Tribunal Federal, não é mais possível” (3a
Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, RESP 252760 / RS ; Recurso
Especial 2000/0027915-3, j. 26/09/2000, DJ
:20/11/2000 PG:00291).
[4] STF - RE 235643-PA.
Ademais, a Constituição de
1988 revelou a preocupação com uma tutela ampla dos direitos de personalidade,
sem limites de valores. Assim, nossos Tribunais passaram a afastar-se da
tarifação[1]
presente nas referidas leis, em nome da proteção mais completa possível aos
direitos de personalidade. Tal entendimento foi consolidado com a edição, pelo
STJ, da Súmula 281, segundo a qual “a indenização por dano moral não está
sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa”.
Não tendo a Constituição
limitado a indenização, mas sim revelado a importância de sua contemplação, a
idéia passou a ser de que as disposições limitantes da tutela dos direitos de
personalidade não foram recepcionadas pela nova ordem constitucional. Assim,
aos poucos os critérios das leis foram sendo afastados e os juízes passaram a
agir com mais liberdade.
E tanto melhor que seja
assim, ao menos no estágio em que nos encontramos. Em cada caso concreto
deve-se analisar a situação e só então partir para a quantificação da
indenização mais completa[2].
Como bem apontou o professor
Carlos Alberto Bittar,
“...a
jurisprudência vem suprindo a ausência de critérios legais, que, ademais, são
raros, porque insuscetíveis de abarcar as diferentes situações danosas
possíveis, em razão da multiplicidade de fatores que interferem na matéria[3]”.
Este, sem dúvida, revela-se
o entendimento mais consentâneo com a tutela dos direitos de personalidade,
sendo inclusive contemplado por diversos arestos do E. Superior Tribunal de
Justiça.
4. Das diretrizes a serem observadas pelo julgador
A doutrina procura auxiliar
o magistrado em sua difícil tarefa, invocando princípios essenciais como os da
razoabilidade, da proporcionalidade e da moderação:
“Na reparação do dano moral o magistrado deverá
apelar para o que lhe parecer eqüitativo ou justo, agindo sempre com um
prudente arbítrio, ouvindo as razões
[1] Em termos de indenização por danos morais e inaplicabilidade da chamada responsabilidade tarifada, confira-se os seguintes julgados do STJ: RESP 419705-SP, RESP 208795-MG, EDRESP 330012-SP, RESP 416846-SP e AGRESP 468909-SP.
[2] Nesse ponto, merece crítica
a tentativa legislativa constante do projeto de Lei 150/1999, “tabelando” a
indenização entre 20 e 180 mil reais. Assim como a inconstitucionalidade foi
aduzida quanto às legislações já existentes, é certo que a nova lei também já
pode advir com tal pecha, por limitar algo que nossa Lei Maior pretendeu
conferir em termos amplos.
das
partes, verificando os elementos probatórios, fixando moderadamente uma
indenização. O valor do dano moral deve ser estabelecido com base em parâmetros
razoáveis, não podendo ensejar uma fonte de enriquecimento, nem mesmo ser
irrisório ou simbólico. A reparação deve ser justa e digna. Portanto, ao fixar
o quantum da indenização, o juiz não procederá a seu bel-prazer, mas como um
homem de responsabilidade, examinando as circunstâncias de cada caso, decidindo
com fundamento e moderação[1]”.
Também o Egrégio Superior Tribunal de Justiça vem recomendando a razoabilidade como
condutora da decisão do juiz. O colendo Tribunal vem, em muitos casos, negando-se a alterar
o valor da indenização, por entender que “fixado o valor da indenização dentro de padrões de
razoabilidade, faz-se desnecessária a intervenção deste Superior Tribunal, devendo prevalecer
os critérios adotados nas instâncias de origem”[2].
Todavia, tais recomendações
parecem ainda muito vagas e inaptas a fornecer ao julgador parâmetros
suficientes para conduzi-lo em sua convicção. Assim, são sugeridos por doutrina
e jurisprudência alguns aspectos a serem observados pelo julgador, tanto em
relação ao ofendido quanto no tocante ao ofensor:
“É
da competência jurisdicional o estabelecimento do modo como o lesante deve
reparar o dano moral, baseado em critérios subjetivos (posição social ou
política do ofendido, intensidade do ânimo de ofender: culpa ou dolo) ou objetivos
(situação econômica do ofendido e do ofensor, risco criado, gravidade e
repercussão da ofensa), influências de acontecimentos exteriores ao fato
prejudicial, lucro obtido pela vítima com a reparação do dano, hipótese em que
se operará a dedução do montante do dano, do valor do benefício auferido, desde
que vinculado ao fato gerador da obrigação de indenizar, não tendo resultado de
circunstâncias fortuitas. Na avaliação do dano moral, o órgão judicante deverá
estabelecer uma reparação eqüitativa, baseada na culpa do agente, na extensão
do prejuízo causado e na capacidade econômica do responsável[3]”
(grifos nossos).
[1] Diniz,
Maria Helena. “A indenização por dano moral – a problemática do quantum”.
Artigo publicado no site http://campus.fortunecity.com/clemson/jus/m03-005.htm.
[2]
Tal afirmação se encontra em vários julgados da Terceira Turma daquela Corte,
dentre os quais ressaltamos os seguintes, da relatoria do Min Castro Filho, da
3a Câmara do STJ: AGA 470538 / SC ; Agravo
Regimental no Agravo de Instrumento 2002/0110893-0, j. em 06/11/2003, DJ :
24/11/2003, p.:00301; AGA 464163 / SP -
Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2002/0090205-2, j. 06/06/2003, DJ :30/06/2003 p. 0242; AGA
463946/ DF - Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2002/0085628-2, j. em
17/06/2003, DJ:18/08/2003, p.:00204.
[3] Diniz, “A indenização...”,
ob. cit.
Analisemos, assim, com mais
cuidado, alguns dos critérios disponíveis ao julgador, segundo orientações de
nossa doutrina e de nossa jurisprudência.
5. Do critério da composição do dano
Segundo o critério compositivo, há de ser a indenização
fixada nos estritos termos do previsto pela teoria da responsabilidade civil,
por cujos meandros se busca a restauração do patrimônio e/ou a compensação por
danos de ordem moral sofridos pela vítima a seus direitos de personalidade ou a
outros direitos[1].
Assim, quando da fixação da indenização por dano moral,
apenas a vítima deve ser objeto de análise pelo juiz, bem como suas
características pessoais e o sofrimento que lhe acarretou o ato danoso. O
montante fixado deve ser apto a lhe mitigar os efeitos decorrentes da lesão a
um direito de índole personalíssima.
Tal postura atende aos reclamos do direito material. Nosso
atual Código Civil, ao tratar da indenização, é claro ao dizer qual deve ser o
critério para sua fixação: segundo o artigo 944, “a indenização mede-se pela
extensão do dano”.
Percebe-se, assim, que a intenção do agente e o grau de culpa
que pautam sua conduta não interferem, em princípio, na fixação do montante a
ser pago.
Modernamente
passou-se a entender que a culpa (em sentido amplo) compreende o dolo, violação
intencional do dever jurídico, e a culpa em sentido estrito, consubstanciada na
imperícia, imprudência ou negligência, sem qualquer deliberação de violar um
dever[2].
A
relação entre o grau de culpa do ofensor e a indenização a ser ele atribuída a
título de reparação é alvo de controvérsias.
Segundo
parte da doutrina tradicional, em face do Código Civil de 1916, não havia
qualquer relação entre esses dois elementos, seja porque o legislador foi
omisso quanto a esta eventual relação, seja porque a índole do instituto da
responsabilidade civil não comporta considerações desta natureza, por estar centrado
no dano e não no agente.
Agostinho
Alvim tratou do tema nos seguintes termos:
“É certo que a maior ou menor gravidade da falta
não influi sobre a indenização, a qual só se medirá pela extensão do dano
causado. A lei não olha para o causador do prejuízo a fim de medir-lhe o grau
de culpa e, sim, para o dano, a fim de
[1] Bittar,
Carlos Alberto. Danos patrimoniais por violações a direitos de personalidade;
artigo publicado na Revista do Advogado da AASP, n° 32, de dezembro/92, p.
17.
[2] Diniz,
Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 1. SP, Editora Saraiva,
2003, p. 291.
avaliar-lhe
a extensão. (...) Em nenhum lugar do Código está dito que o dolo exerce
influência sobre o montante de indenização[1]”.
Também
Humberto Theodoro Jr. assim entende:
“A
maior ou menor repercussão social, a maior ou menor intensidade do dolo ou da
culpa, são dados completamente irrelevantes no plano da responsabilidade civil.
O valor da indenização a ser proporcionada à vítima deve ser absolutamente
desvinculado da gravidade do ato cometido, porque sua função não é punir, mas
apenas ressarcir[2]”.
Ocorre, todavia, que o atual Código Civil tem tratamento
legislativo diverso em termos de indenização, no que tange à relação entre
culpa e valor indenizatório.
É certo que o artigo 944, caput, proclama que a indenização é
medida pela extensão do dano. Todavia, seu parágrafo único afirma: “se houver
excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz
reduzir, eqüitativamente, a indenização”. Assim, a consideração da culpa pode
gerar a redução do valor a ser fixado.
Em virtude da inserção de tal dispositivo em nosso
ordenamento, há quem conclua que a culpa passa a ser elemento importante na
fixação da indenização, dando suporte ao caráter de desestímulo a ser considerado,
conforme se demonstrará no tópico seguinte.
Remanesce, porém, ainda, o argumento de que a índole da
responsabilidade civil é, como regra geral, centrada no dano, e não no agente –
o que, inclusive, a diferencia da responsabilidade penal.
6. Do caráter de desestímulo
Segundo a teoria do desestímulo, as condutas danosas seriam
mais eficazmente coibidas através de uma repressão pecuniária robustecida. A
indenização deve ser fixada em valor tal que, além de compor a vítima em seus
danos, agrava a situação do agente a ponto de desestimulá-lo a reincidir em
comportamentos danosos.
O Professor Carlos Alberto Bittar assim se manifestou sobre o
tema:
[1]
Alvim, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas
conseqüências. SP, Ed. Saraiva, 1980, p. 199.
“Deve-se,
em qualquer hipótese, ter presentes os princípios básicos da satisfação
integral dos interesses lesados e da estipulação de valor que iniba novas
investidas, como balizas maiores na determinação da reparação devida[1]”.
O aludido autor alertou que tal consideração revela tendência
presente inclusive em outros ordenamentos, especialmente no dos Estados Unidos,
em que há uma verba indenizatória específica com caráter exemplar ao causador
do dano, denominada punitive damages.
Talvez por isso, por certo tempo, entre nós se mencionou o
caráter “punitivo” da indenização por danos morais. A atribuição de um valor
elevado, de acordo com as condições econômicas do agente, constituiria uma
sanção por seu comportamento violador.
Há quem chegue a afirmar que, em face da intangibilidade do
dano moral, imensurável por natureza, a punição é o único objetivo visado pela
sua reparabilidade. Para confirmar a existência de tal entendimento,
transcrevemos excerto de sentença proferida nos autos de ação indenizatória
versando sobre danos decorrentes de acidente de veículo:
“Se o dano
moral ocorreu, não há como repará-lo ou compensá-lo, no sentido estrito dessas
duas palavras. Tendo em vista, contudo, que a Constituição Federal consagra a
indenização do dano moral, chega-se a uma conclusão pouco apontada pela
doutrina: o fato de que o pagamento da indenização não é uma reparação do dano,
por definição irreparável, mas uma punição ao seu autor. Como o que se objetiva
é a punição do causador do dano, há que se levar dois elementos em consideração
para fixar o quantum da indenização:
a dimensão do dano e a capacidade econômica de quem o causou[2]”.
Todavia, a idéia de pena sem prévia cominação legal não se
coaduna com nosso sistema. Na esfera civil, o princípio que rege a
responsabilidade civil é o da reparação integral, de índole eminentemente
compensatória. Devemos nos lembrar que, quando há um direito de personalidade
cuja lesão faça merecer uma pena, o ordenamento se ocupa de prever a tutela
penal, como ocorre nos crimes contra a honra; a despeito da correspondente
indenização a que faz jus, o titular da honra violada pode buscar a punição do
ofensor na esfera penal.
Poderia o julgador ir além da lei, atribuindo uma pena que o
sistema não previu? Parece-nos que não.
[2] Sentença
proferida nos autos da ação indenizatória de rito ordinário processada sob o n°
1.203/97, perante a 5a Vara Cível do Foro Central da Capital de São
Paulo, em 24.03.1999.
Nesse sentido cumpre destacar excerto de recente julgado do
STJ, acerca do rumoroso caso paulista da Escola de Base, em que houve
divulgação temerária da prática de abuso sexual contra seus alunos:
“Não há,
desde que guardada a proporcionalidade e razoabilidade da indenização,
possibilidade de enriquecimento ilícito da vítima em detrimento do autor do
dano, quer pela própria dificuldade de mensuração do prejuízo quer pela
evidente necessidade de impedir que a indenização arbitrada seja tão leve
que incentive o réu a continuar causando danos morais contra outras vítimas, ou
que a sociedade comece a ver com naturalidade tais comportamentos e passe a
agir da mesma forma[1]”
(grifos nossos).
Assim, ao invés de se considerar o caráter penalizante
(“punitivo”), há quem invoque a teoria do desestímulo. As condições do agente e
o grau de culpa em que incorreu devem ser considerados para que o mecanismo da
responsabilidade civil seja apto não só a compensar a vítima, mas também a
inibir novas condutas danosas, não propriamente “punindo” o ofensor, mas com um
caráter pedagógico.
Acerca de relevância do grau de culpa para a fixação da
indenização, o Código Civil de 2002 trouxe significativa alteração. Assim
destaca a Professora Regina Beatriz Tavares da Silva:
“O
parágrafo único do artigo 944, ao adotar a teoria da gradação da culpa, de modo
a influenciar o quantum indenizatório, possibilita sua diminuição, diante da
desproporção entre a gravidade da culpa e o dano e, deste modo, confere apoio
legal à teoria do desestímulo...[2]”.
Assim, conclui que “o caráter sociológico da responsabilidade
civil demonstra a relevância do caráter de desestimulo da indenização por dano
moral[3]”.
Efetivamente, parcelas significativas da doutrina e da
jurisprudência aduzem claramente a função de desestímulo da responsabilidade
civil por dano moral[4].
[1] STJ - 2a
Turma, Min. Eliana Calmon, Resp 351779 / SP; Recurso Especial 2001/0112777-9, j. 19/11/2002, DJ
09.02.2004 p. 151, LEXSTJ vol. 176 p. 99, RDR vol. 30 p. 337. Caso não se
recorde o leitor, ao final o valor fixado a titulo de indenização por dano
moral aos antigos donos da instituição de ensino foi de R$ 250.000,00 (duzentos
e cinqüenta mil reais) para cada um.
[2]
“Critérios para a fixação da indenização do dano moral”, in Questões
Controvertidas no Novo Código Civil. Coord: Delgado, Mario e Alves, Jones. São
Paulo, Editora Método, 2003, p. 266.
[4]
Dentre vários outros, no mesmo sentido, Menezes Direito e Cavalieri Filho, após
citar Clayton Reis, aduzem a importância de “impor uma reparação que alcance a
satisfação do lesado e a punição do causador do dano na justa medida”.
(Comentários ao Novo Código Civil, vol. XIII, coord. por Sálvio Figueiredo
Teixeira. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2004, p. 352).
Para muitos, quando definido em pecúnia, o
valor da indenização deve ser tal que desestimule novas práticas lesivas, a fim
de que se criem óbices jurídicos às condutas rejeitadas pelo Direito; assim,
seria possível conferir mais segurança e tranqüilidade para um desenvolvimento
normal e equilibrado das atividades humanas no meio social[1].
A consideração do grau de culpa do agente e de sua capacidade
econômica por certo são temas considerados quando da fixação de indenização
para desestimular o agente.
O inciso II do artigo 53 da Lei de Imprensa refere-se
expressamente à consideração por parte do juiz, quando do arbitramento da
indenização por dano moral, da situação econômica do causador do dano. Segundo
tal critério, há de ser aferida a condição econômica do agente para se
determinar o valor apto a indenizar o dano moral.
Em termos de justiça social, o seguinte raciocínio merece ser
considerado com especial atenção:
“Todos
os membros da sociedade – indivíduos ou instituições, governantes ou governados
– têm o dever de cooperar para o bem comum. E essa obrigação é regida por um
princípio de igualdade fundamentalmente proporcional.(...) No tocante à justiça
social, a obrigação de concorrer para o bem comum não é absolutamente igual no caso de um
simples empregado, de um chefe de empresa, de um legislador ou de um governante.
Todos têm o dever de contribuir para o bem comum. Mas esse dever é proporcional
à respectiva função e responsabilidade na vida social[2]”.
Há julgados que chegam a expressamente conceber a relação
entre as capacidades econômica de vítima e ofensor:
“Sopesados os elementos fáticos dos autos, como a capacidade econômica do agravante,
o valor da dívida, o período em que o nome da agravada permaneceu indevidamente inscrito no Serasa e os danos advindos com a conduta indevida, não se pode considerar como abusivo o valor da indenização fixado em R$ 27.000,00 (vinte e sete mil reais)[3]”.
[3] STJ - 3a Turma, Min. Carlos Alberto Menezes Direito, AGA 477298 / MS ; Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2002/0129011-6, j. em 22/05/2003, DJ:30/06/2003, pg:00244.
Deve-se ponderar que a consideração da condição do agente é
alvo de muitas críticas por parte dos adeptos de uma visão exclusivamente
compensatória da reparação do dano moral. Isto porque se pondera que se deve
focar, quando da fixação da indenização, a situação da vítima, e não o causador
do dano.
Em julgado sobre a pretensão ao recebimento de indenização
por danos morais em virtude da ausência de repasse, pelo banco aos cofres
públicos, de imposto pago tempestivamente pelo contribuinte, assim se
manifestou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal sobre o critério em tela:
“A fixação
da indenização a título de danos morais fica ao arbítrio do magistrado, que
deve levar em conta a gravidade dos danos sofridos pela vítima. A capacidade
financeira do causador do dano, por si só, não autoriza a fixação de quantum que propicie o enriquecimento
sem causa da vítima[1]”.
Segundo tal posicionamento, não se
deve olhar o potencial do ofensor. Em termos de lógica jurídica, seria errado
ocorrer que alguém, sofrendo ofensas semelhantes por agentes diferentes, fosse
contemplado com verbas indenizatórias destoantes. Assim pondera Tourinho Filho
sobre o tema, através da análise de um exemplo prático:
“Há pouco tempo, um magistrado, no
caso de homicídio culposo de uma jovem, estabeleceu a reparação em R$
1.000.000,00. De que critérios se valeu o nobre Magistrado? Obviamente na
posição econômico-financeira do autor do fato, o que parece absurdo[2]”.
7. Responsabilidade civil como sanção.
Uma derradeira pergunta pode se revelar interessante: pode a
responsabilidade civil, em si, ser considerada uma espécie de sanção?
A sanção pode ser concebida como uma espécie de
proteção especial de que lança mão o Estado para tutelar o direito subjetivo e
a relação jurídica Pode ser definida como a conseqüência jurídica que atinge o
sujeito passivo pelo não cumprimento de sua prestação ou, na formulação de
Garcia Maynez: sanção é a conseqüência jurídica que o não cumprimento de um
[1] TJDF
- 2a Turma, Ap. n°
47.303/98, Rel. Des. Hermenegildo Gonçalves; j. 13.04.1998, v.u., ementa –
BAASP n°
2.076.
dever
produz em relação ao obrigado. Sendo a sanção uma conseqüência, pressupõe um
dever que não foi cumprido[1].
Carnelutti
nos ensina que as sanções compreendem os meios físicos preventivos de imposição
dos preceitos, entendidos estes como fórmulas de aplicação das regras éticas
que normatizam determinada situação[2].
Também
segundo Mario Allara a sanção possui uma eficácia preventiva, enquanto engendra
freqüentemente o motivo que leva o sujeito a conduzir-se de acordo com a norma
primária[3].
Com a
clareza que lhe é peculiar, Moacyr Amaral Santos explica que sanções são
medidas estabelecidas pelo direito, como conseqüência da desobediência a um
imperativo legal[4].
Segundo a natureza da norma infringida, teremos sanções civis, penais,
processuais, administrativas.
Em face
da infração a um dispositivo legal penal, teremos a ocorrência de um crime,
exsurgindo a sanção penal – pena -, enquanto a inobservância de norma
prescritiva cível poderá engendrar a respectiva sanção civil.
Partindo da ocorrência do ato
ilícito em sua acepção de fato contrário ao direito, Orlando Gomes assim
trabalha com a distinção entre delito civil e delito penal:
“O delito
penal consiste na violação de preceito instituído em defesa da sociedade,
reprimida como uma pena. O delito
civil – ato ilícito – na infração de
norma de tutela de interesse privado. A sanção imposta ao transgressor visa a
restituir a integridade do direito lesado, consistindo no dever de reparar o
dano causado. No fundo, a distinção resume-se a uma questão de avaliação. O
mesmo fato contrário ao direito pode ser apreciado por dois critérios, próprios
da legislação civil e da legislação penal, constituindo simultaneamente crime e ato ilícito. Não há, porém, maior dificuldade em qualificá-lo, incluindo-o
numa só, ou nas duas esferas, porque os atos penalmente puníveis estão taxativamente expressos na lei penal. Fora dessa previsão não há
crime, pois o Direito Penal assenta no princípio nullum crimen sine lege. Na qualificação do ato ilícito, basta que um interesse privado seja atingido em
conseqüência da conduta culposa de alguém. Se do fato material da violação de
um dever jurídico resulta dano, o delito está caracterizado. Saleilles
esclareceu excelentemente a distinção neste ponto, mostrando que os elementos materiais do delito civil não
precisam ser fixados
[2] Carnelutti, Francesco. Teoria Geral do
Direito. SP, Livraria Acadêmica Saraiva & Cia, 1942, p. 98-99.
legislativamente,
pois resultam de toda violação de um interesse privado tutelado pelo Direito[1].”
Nossa
melhor doutrina pondera que o instituto da responsabilidade civil constitui
resposta do ordenamento jurídico à violação do princípio geral de que ninguém
deve prejudicar os outros, alterum non
laedere[2].
Sendo
a sanção a conseqüência da inobservância a um imperativo legal, coaduna-se
perfeitamente o instituto da responsabilidade civil com a acepção de sanção de
natureza civil.
Ao
tratar das funções da responsabilidade civil na atualidade, a professora Maria
Helena Diniz[3],
com muita propriedade, destaca:
“
... O princípio que domina a responsabilidade civil na era contemporânea é o da
restitutio in integrum (...)
Infere-se daí que a responsabilidade aparece como uma sanção. A sanção
é, nas palavras de Goffredo Telles Jr., uma medida legal que poderá vir a ser
imposta por quem foi lesado pela violação da norma jurídica, a fim de fazer
cumprir a norma violada, de fazer reparar o dano causado ou de infundir
respeito à ordem jurídica. A sanção é a conseqüência jurídica que o não
cumprimento de um dever produz em relação ao obrigado. A responsabilidade
civil constitui uma sanção civil, por
decorrer de infração de norma de direito privado, cujo objetivo é o interesse
particular, e, em sua natureza, é compensatória,
por abranger indenização ou reparação de dano causado por ato ilícito,
contratual ou extracontratual e por ato lícito. (...) Vem a ser uma reação
provocada pela infração a um dever preexistente. É, desse modo, a conseqüência
que o agente, em virtude da violação de dever, sofre pela prática de seus atos.
Tem uma função essencialmente indenizatória, ressarcitória ou reparadora.” (grifos
nossos).
A eminente civilista é clara ao
conceber a responsabilidade civil como modalidade de sanção civil. Assim também
nos parece.
Sem dúvida, o instituto da
responsabilidade civil foi concebido como sanção civil e tem, em si, o caráter
inerente a toda sanção: desestimular condutas. A mensagem de nosso ordenamento
é: não cause danos, ou terá como sanção correspondente a obrigação de indenizar
o lesado.
[2]Orlando Gomes, ob. cit., p.
153; Stocco, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo, Editora Revista dos
Tribunais, 1999, p. 59; Bittar, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais.
SP, Ed. Revista dos Tribunais, 1994, p. 16.
8. Conclusão.
Se o mecanismo da responsabilidade
civil já constitui, em si, uma sanção, seria apropriado, na fixação do dano
moral, atribuir (mais) um caráter de desestímulo ao causador do dano, através
da majoração do valor da indenização?
Sob pena
de se incorrer em bis in idem, a
resposta há de ser negativa. Entendemos que, pela configuração de nosso sistema,
pela natureza de sanção inerente à responsabilidade civil, deve ser considerado
o caráter compensatório para a fixação do quantum
devido.
Assim, a
extensão do dano há de ser o parâmetro norteador ao julgador no caso concreto,
nos termos do caput do artigo 944.
A exceção do parágrafo único do artigo 944 trata de
situação excepcionalíssima e não deve ser estendida sua exegese para casos
outros; a consideração do grau de culpa só deve ocorrer no caso referido pelo
dispositivo.
9. Referências bibliográficas.
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Agostinho. Da inexecução das obrigações e
suas conseqüências. São Paulo, Ed. Saraiva, 1980.
Bittar, Carlos Alberto. Danos patrimoniais por violações a
direitos de personalidade; artigo publicado na Revista do Advogado da AASP, n° 32, de dezembro/92, p. 17.
___________________ Reparação civil por danos morais. São
Paulo, Editora RT, 1994.
Carnelutti, Francesco. Teoria Geral do Direito. SP, Livraria
Acadêmica Saraiva & Cia, 1942.
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_________________
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site http://campus.fortunecity.com/clemson/jus/m03-005.htm
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Jr., Humberto. Dano Moral. São Paulo,
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Filho, Fernando da Costa. Processo Penal
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