18 de jun. de 2012

Para Entender o Conceito De Processo (ou “do processo como talher”)


LUIZ DELLORE 

Mestre e doutor em processo civil pela USP. Mestre em constitucional pela PUC/SP. Professor de processo civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor de processo civil em cursos preparatórios para OAB (1ª e 2ª fases). Professor de especialização em processo civil na Escola Paulista de Direito e IEDI. Advogado concursado da Caixa Econômica Federal. Autor, dentre outras obras e artigos jurídicos, do Manual de Prática Civil e Questões do Exame de Ordem Comentadas. 

1) INTRODUÇÃO E UM ALERTA 

Muitas vezes quem estuda processo civil conhece os principais institutos da disciplina, sabe quais são os prazos processuais e compreende bem o sistema processual; ou seja, navega bem na área. Porém, mesmo assim, acaba tendo dúvidas a respeito do que é, efetivamente, o 
PROCESSO. 

Pelo outro lado, há quem tenha dificuldade em compreender os institutos de processo civil e que, tal qual seu colega acima descrito, tampouco compreende o que de fato é o processo. 

Assim, compreender o conceito de processo é uma dúvida que ronda diversos estudiosos do processo civil 1. Nesta perspectiva, tem-se aqui o objetivo deste breve ensaio: explicar o que de fato é o processo. 

Porém, o desiderato é conceituar o processo de uma forma que possa ser compreendida por qualquer um – mesmo aquele que esteja iniciando seus estudos e que ainda não tenha nenhum conhecimento a respeito da disciplina. 

O leitor pode até entender que as analogias aqui propostas serão um tanto quanto superficiais – com o que concordo. Este é o alerta que desde logo faço. Não se espere, aqui, discussões acessíveis apenas aos iniciados nas altas ciências do processo civil. 

Muito ao contrário, reitero que a finalidade deste trabalho é conceituar o processo de maneira capaz de ser apreendida por qualquer um, conheça ou não processo civil. 


2) O CONCEITO DE PROCESSO E PROCEDIMENTO 

Dentre outros conceitos, pode-se definir processo como “série de atos coordenados regulados pelo direito processual, por meio dos quais se exerce a jurisdição”2 ou como “o método, isto é, o sistema de compor a lide em juízo através de uma relação jurídica vinculativa de direito público”3
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1 Vale destacar que em diversos concursos públicos – inclusive na fase oral – as bancas examinadoras formulam perguntas exatamente envolvendo o conceito de processo. 
2 Definição, em tradução livre, do conceito de PIERO CALAMANDREI, importante autor italiano (Estudios sobre el Proceso Civil, Ed Bibliográfica Argentina: Buenos Aires, 1945, p. 287). 
3 HUMBERTO THEODORO JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 49. 


Em obra clássica de Teoria Geral do Processo, afirma-se que “O processo, então, pode ser encarado pelo aspecto dos atos que lhe dão corpo e das relações entre eles e igualmente pelo aspecto das relações entre os seus sujeitos”4

De seu turno, “do processo distingue-se o procedimento, que é a forma pela qual se sucedem os atos processuais”5. Também se pode conceituar procedimento como o “meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo”6 ou “a forma material com que o processo se realiza em cada caso concreto”7

Diz-se, também, pensando em uma esfera, que processo é o conteúdo, ao passo que o procedimento seria a parte externa. 

Estes conceitos são, tecnicamente, irrepreensíveis. Porém, sem dúvida necessitam de algum grau de abstração e conhecimento do leitor para que possam ser adequadamente compreendidos. 

Uma definição mais fácil de visualizar – e, sem dúvidas, igualmente técnica – é a apresentada 
por SÉRGIO LUIZ MONTEIRO SALLES 8, a partir de ensinamentos de ALFREDO BUZAID 9

A partir destas lições, pode-se entender que processo é um INSTRUMENTO. Porém, para que bem se compreenda a definição, deve-se responder às seguintes indagações: 

- instrumento de quem? 
- instrumento para quem? 
- instrumento para quê? 


Instrumento que o ESTADO10 coloca à disposição do JURISDICIONADO11 para ADMINISTRAR JUSTIÇA (ou seja, resolver a LIDE12). 

Ou seja, considerando que não é juridicamente aceitável ao jurisdicionado buscar a satisfação do seu direito com base na força13, necessária se faz a presença do Estado-Juiz para solucionar o conflito. 
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4ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Teoria Geral do Processo, 11. ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 277. 
5 VICENTE GRECO FILHO, Direito Processual Civil, 20. ed., São Paulo: Saraiva, 2007, v. 1, p. 37.[
6 ADA, DINAMARCO, CINTRA, op. cit., p. 277. 
7 HUMBERTO THEODORO JUNIOR, op. cit., p. 49. 
8 Breviário Teórico e Prático de Direito Processual Civil, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 96-97. 
9 Na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, item 5, assim afirma o autor do anteprojeto do atual Código: “O processo civil é um instrumento que o Estado põe à disposição dos litigantes, a fim de administrar justiça”.
10 Mais especificamente, o Estado-Juiz, ou seja, o Poder Judiciário. 
11 Qualquer um que, diante de um conflito, precisa do Judiciário para a solução de tal questão. Litigante.
12 Lide é a conflito de interesses (pretensão) qualificada pela resistência, na clássica definição de FRANCESCO CARNELUTTI, autor italiano do século passado com grande influência no direito processual brasileiro (Sistema di diritto processuale, Padova: Cedam, 1936, v. 1, n. 2 e 14).
13 Esta é a regra. Porém, há casos em que o sistema permite a autotutela (autodefesa) pelo próprio titular do direito. O caso mais significativo envolve a proteção da posse (CC, art. 1.210, § 1.º): o próprio possuidor lesado pode agir em legítima defesa para manter sua posse ou, se esbulhado, atuar em desforço imediato para se reintegrar. 


Porém, o Estado-Juiz, para que seja mantida sua imparcialidade, é inerte (CPC, art. 2º e 262). Ou seja, se a parte interessada (a parte que tem algum problema) nada fizer, o Estado nada fará. Assim, costuma-se falar que o Estado deve ser provocado, para que então saia da sua inércia. 

E qual é o meio, qual é o INSTRUMENTO que a parte dispõe para fazer com o que o Estado 
aprecie o conflito, o litígio, a lide? Exatamente o processo. 

Retomando indagações anteriores, portanto, podemos concluir que processo é: 

- instrumento de quem? Estado. 
- instrumento para quem? Jurisdicionado. 
- instrumento para quê? Solucionar a lide. 
Por sua vez, o que seria o PROCEDIMENTO? 

Procedimento é o modo, maneira, forma pela qual o processo se desenvolve. Os processos, ao se desenvolverem rumo à solução do conflito (trâmite processual), não são iguais. E este tramitar de forma diferenciada é, exatamente, o que se entende por procedimento. 

O Código de Processo Civil conhece três processos (cf. CPC, art. 270): 

a) Conhecimento (Livro I do CPC, art. 1º-565) 
b) Execução (Livro II do CPC, art. 566-795) 
c) Cautelar (Livro III do CPC, art. 796-889) 

Por sua vez, no processo de conhecimento14, há o procedimento comum ou especial. 

O procedimento comum é previsto no próprio CPC e é dividido em dois ritos: ordinário (CPC, 
art. 282-475) ou sumário (CPC, art. 275-280). Por RITO entenda-se a forma, modo, maneira pela qual o procedimento se desenvolve. 

Já em relação aos procedimentos especiais, alguns estão previstos no próprio CPC (Livro IV, art. 890-1.210) e outros, em leis extravagantes (dentre outras, Lei de Alimentos [L. 5.478/68], Lei do Mandado de Segurança [L. 1.533/51], Lei da Ação Civil Pública [L. 7.347/85] etc.) 

Em síntese: 

(i) Processo é instrumento. 
O CPC prevê três instrumentos: processo de conhecimento, execução e cautelar. 

(ii) Procedimento é a forma pela qual o processo se desenvolve. 
O processo de conhecimento pode ter seu trâmite pelo procedimento comum ou especial. 

(iii) Rito é a forma pela qual o procedimento se desenvolve. 
O procedimento comum (processo de conhecimento) pode ser ordinário ou sumário.
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14 Por se tratar do processo mais relevante do ponto de vista prático e acadêmico, analisamos neste ensaio apenas os procedimentos do processo de conhecimento. Para verificar quais são os procedimentos nos outros processos e para maior aprofundamento no assunto, consultar, de nossa co-autoria, Manual de Prática Civil, 2. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 28-38. 


Não se trata de uma classificação simples, mas fundamental para bem se compreender o processo civil. Após esta explicação, porém, busca-se exatamente facilitar a apreensão destes conceitos. É o que se pretende fazer no tópico seguinte. 

3) ANALOGIA PARA BEM SE COMPREENDER O PROCESSO E O PROCEDIMENTO: 
TALHERES 

Para se entender a distinção entre processo e procedimento (e também rito), proponho uma 
analogia com instrumentos com os quais todos estão familiarizados15

Quando se vai ao fórum e se visualizam os diversos autos de processo empilhados nos cartórios, não se verificam maiores diferenças entre uns e outros. Por esta razão, é difícil perceber a distinção entre os diversos tipos de processo. 

Daí a conveniência da explicação que ora se apresenta: é fácil visualizar a distinção entre os três TALHERES que conhecemos. Qualquer um entende a diferença entre um garfo, uma faca e uma colher. 

São três instrumentos que podem ser classificados sob um mesmo gênero (talher), mas cada um se presta a uma finalidade específica (se temos necessidade de uma faca; garfo e colher não servem). 

O mesmo ocorre em relação ao processo. São três instrumentos que podem ser classificados sob um mesmo gênero (processo), mas cada um se presta a uma finalidade específica (se temos necessidade de um processo de conhecimento; execução e cautelar não servem). 

Processo de conhecimento deve ser utilizado quando o conflito (lide, litígio) que se quer resolver é de INCERTEZA (ao se analisar o processo no início, não se sabe quem tem razão – o juiz é que dirá, na sentença). 

Processo de execução deve ser utilizado quando o conflito que se quer resolver é de INADIMPLEMENTO (ao se analisar o processo no início, já se sabe quem tem razão e quem tem de cumprir uma obrigação – mas esta pessoa que deveria cumprir não o fez). 

Processo cautelar deve ser utilizado quando se está diante de uma situação de URGÊNCIA (cautelar que em regra buscará resguardar o resultado de um processo dito principal – o de conhecimento ou de execução). 

Assim, se o problema a ser solucionado é a incerteza, é necessário o processo de conhecimento. De nada adiantará o processo de execução ou cautelar. Tal qual, diante da necessidade de um garfo, de nada adiantará uma faca ou colher. 

Mas não é só. A analogia também se presta para que se entenda o que é o procedimento. 
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15 O desenvolvimento desta explicação se deu ao longo dos últimos anos, no bojo de aulas na graduação e em cursos preparatórios, a partir de 2004. Porém, a analogia, da forma como ora apresentada, somente foi concluída no início de 2008. Desconheço algum autor que apresente uma explicação semelhante. Se o leitor conhecer alguém que se manifeste neste sentido, gostaria de ser informado. 


Tomemos como exemplo um talher, especificamente a faca. Toda faca será igual? Não. Existe a faca para o dia-a-dia, com serra. Mas, para situações específicas, existem outras facas. Para 
peixe, por exemplo, usa-se uma faca especial, sem corte. Para comer carne em uma churrascaria, há também uma faca específica, com um corte mais afiado que a simples serra da faca do cotidiano. Apesar da distinção, todos estes instrumentos são facas e, da mesma forma, fazem parte do gênero talher. 

A mesma lógica acima exposta pode ser transportada para o processo. 

Todo processo de conhecimento será igual, terá o mesmo desenvolvimento ou trâmite – ou seja, procedimento? Não. Há um procedimento que servirá para diversas situações, cotidianamente utilizado, o qual será o procedimento padrão, denominado de comum (seria a faca com serra). Mas, considerando as necessidades do caso concreto, o legislador cria procedimentos diferenciados, denominados de especiais, exatamente porque são diferentes do comum (seria a faca de peixe). 

Porém, por que o legislador cria procedimentos especiais? Exatamente pela mesma razão pela qual é criada uma faca especial: o comum não é totalmente suficiente para resolver o problema específico. Como exemplo, basta esclarecer que o procedimento comum não é suficiente para resolver, de forma adequada, a necessidade de alimentos de um filho em face do pai – há necessidade de mais agilidade. Daí a criação de um procedimento especia l (previsto na L. 5.478/68, como já destacado anteriormente). 

E ainda há mais. Avançamos ainda nesta analogia para que se compreenda o conceito de rito. 

Toda faca de serra será igual? Não. 

Há facas de serra utilizadas no dia-a-dia que se encontram nas gavetas das casas, sendo utilizadas para as refeições usuais. Estas facas são feitas de inox. Contudo, numa festa de criança ou em outra situação descontraída, estas facas de serra de inox serão utilizadas? Não. Para as crianças, em uma ocasião mais simples, uma faca de serra de plástico já será mais do que suficiente. De qualquer forma, seja de plástico ou de inox, ambas são facas de serra. E tudo é talher. 

Na mesma ótica, voltando para o processo, especificadamente para o de conhecimento, pergunto: 
todo procedimento comum será igual? Não. 

Há um procedimento comum, que é mais completo, com diversas fases, utilizado no cotidiano, 
residualmente16. Será o procedimento comum, rito ordinário – ou apenas, como o próprio Código por vezes menciona, o procedimento ordinário (subentendido que é o comum). 

Porém, para situações mais simples – como, por exemplo, quando o valor da causa é de até 60 salários mínimos (CPC, art. 275, I) – haverá um rito mais simples e mais célere17, denominado de sumário. Em causas de menor valor não há necessidade de se usar o procedimento comum, rito ordinário (faca de serra de inox), sendo suficiente o procedimento comum, rito sumário (faca de serra de plástico). 
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16 Ou seja, será utilizado o ordinário na hipótese de não existir qualquer outro cabível. Assim, utiliza-se o procedimento comum se não cabível o especial. E, em relação ao procedimento comum, utiliza -se o rito ordinário se não cabível o sumário. Neste sentido, CPC, art. 271 e 272. 
17 Em tese é mais célere. Muitas vezes, na prática, considerando a realidade do Judiciário, o sumário é tão ou até mais lento que o ordinário. 


4) CONCLUSÃO 

Como se percebe, a analogia com a figura dos talheres permite que os conceitos de processo, procedimento e rito sejam adequadamente explicados e, principalmente, compreendidos e apreendidos. 

Neste sentido, apresentamos um quadro que bem sintetiza o que foi exposto neste artigo: 

3 Processos (instrumento)      3 Talheres 
- conhecimento                          - faca 
- execução                                  - garfo 
- cautelar                                    - colher 


Forma do processo de conhecimento (procedimento)                    Tipo de faca 
- comum                                                                                                 - serra 
-especial (diferente do comum: alimentos, inventário, 
mandado de segurança etc)                                                                 - não de serra 
                                                                                                                 (peixe, carne etc.) 


Forma do procedimento comum (rito)                                  Material da faca de serra 
- ordinário                                                                                                 - inox 
- sumário                                                                                                   - plástico 

E, à guisa de conclusão, cabe mais uma comparação entre processo e talher. 

Quando a sociedade não era desenvolvida, resolvia-se tudo com as mãos. Comia-se com a mão, assim como os conflitos eram resolvidos mediante a violência, com as próprias mãos. 

Com o desenvolvimento da sociedade, surgiram instrumentos para que o homem se alimentasse (talheres). Estes instrumentos foram se refinando ao longo dos anos, com a criação de garfo, faca e colher, com variações conforme o tipo de alimento (faca de serra de inox, faca de serra de plástico, faca de peixe etc.). 

Da mesma forma, com o desenvolvimento da sociedade, surgiram instrumentos para a solução do conflito (processo). Estes instrumentos foram se refinando ao longo dos anos, com a existência de um processo de conhecimento, execução e cautelar, com variações conforme o 
litígio (no processo de conhecimento: procedimento comum rito ordinário, procedimento comum rito sumário e procedimentos especiais). 

Em suma, espero que a analogia ora proposta tenha sido útil para a fixação do conceito de processo.